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REVISTA TABLADO

págs. 13, 14 e contracapa em 22 de outubro a 5 de novembro

de 2004 – Brasília, DF.

              EDITORIAL:  A ROSA

           "É com grande prazer que, na segunda rodada de “Cinco perguntinhas para...”, destacamos o trabalho, ainda pouco conhecido no mundinho do Plano Piloto, de uma obstinada. Criadora da primeira escola de teatro de Taguatinga, a professora Rosa Pires merece como poucos esse título. É doutora não apenas em artes, mas em persistência, em solidariedade e em superação.

            Num bate-papo franco e de rara sinceridade com TABLADO, Rosa fala de suas origens pobres, dos muitos obstáculos que a vida jogou no seu caminho e de sua vontade sem limites de levar oportunidade além das fronteiras do “avião”.

            A Escola de Teatro ¨& Cia Rosa Pires é um exemplo não apenas de que existe – e como existe! – vida cultural fora dos eixinhos culturais da capital, como da urgente necessidade de se olhar bem além dos horizontes onde moramos e nos divertimos. “Já me disseram que é uma forma romântica de ver a vida, outros que é utopia ou rebeldia de adolescente. Eu não chamo de nada. Digo apenas que é uma opção de um ideal de vida”, resume a professora.

            Leiam atentamente a entrevista e vivam junto com a gente, por alguns minutos, a utopia maravilhosa de Rosa Pires. Fiquem atentos ao nosso “selinho” de Tablado Recomenda." (Editores da Tablado)

Coluna: Cinco perguntinhas para...

ROSA PIRES:

“A POLÍTICA CULTURAL É ELITISTA”

           "Desde criança no interior de Goiás, ela organizava – para desespero da mãe! – apresentações no quintal de casa. Tinha apresentações de dança, música e teatro, com direito a figurino, cenário e tudo. “A qualidade eu não sei, mas o barulho era notícia sempre”, lembra a professora Rosa Pires, criadora da primeira Escola de Teatro de Taguatinga, que persegue uma ideia: levar cultura onde o povo está – mesmo fora do Plano Piloto. Foi quando se mudou para Taguatinga, ainda adolescente, que a vocação despertou mais forte. O pai a leva à escola na sua velha Kombi que, segundo ela, mais parecia a “bateria da escola de Samba da Mangueira” de tanto barulho que fazia na lataria caindo os pedaços. Na Primeira Amostra de Ciências e Artes de Taguatinga, em 1990, ganhou um prêmio pela originalidade na apresentação. Sem fronteiras para sua criatividade foi até o Pará na aldeia dos índios Caiapós, para trazer um arsenal de cocar, plantas medicinais, colares e artesanatos. Acabou ingressando profissionalmente no teatro, cursando Artes Cênicas no Dulcina. “Como não tinha dinheiro nem pra pagar passagem”, recorda Rosa, “fiz milhares de outros cursos para conseguir realizar este sonho de crianças: ser artista. “Trabalhou em parque de diversões, vendeu bolsas de barbante na Rodoviária do Plano Piloto e foi até cabeleireira. Tem muito mais história, como nos conta Rosa Pires.

ROSA PIRES: Há oito anos venho trabalhando e economizando, mas somente agora consegui montar um espaço onde pudesse apresentar espetáculos de qualidade e de cunho educativo, ao mesmo tempo que fosse acessível à população menos privilegiada, como é o caso das cidades satélites. Este espaço é um teatro de bolso para apenas 50 pessoas, mas conta com toda a infraestrutura necessária para se apreciar um bom espetáculo: mesa de luz, refletores, palco, ar condicionado, som e o principal: a escola de teatro. Os espetáculos apresentados são o resultado das oficinas de interpretação, um trabalho de muita disciplina, leitura, pesquisas e laboratórios. Não vendemos ilusão. Nossos alunos pertencem à própria comunidade e não buscam no teatro uma profissão somente. São pessoas com depressão, tímidas, com dificuldade de trabalhar em grupo e se expressar. Além do autoconhecimento, a melhora na autoestima é surpreendente. O que ganharam no processo da oficina, retribuem no espetáculo para a comunidade. Como não temos patrocínio, a produção vem do público que, satisfeito com o resultado do trabalho, adquire convites para as demais apresentações. Os demais custos ficam a cargo da própria escola e do meu trabalho. Além de ministrar as aulas, faço de tudo um pouco: bordo o figurino, a sonoplastia, a arte fina dos cartazes, a divulgação, produção e... Ufa! O que mais for necessário. Os alunos também me ajudam muito e têm muito interesse em aprender. Quem não sai ator, sai pelo menos fazendo bijuterias para ganhar o sustento.

TABLADO: Brasília tem boa parte de sua atividade cultural voltada para o Plano Piloto. Por que escolheu levar espetáculos e ajudar a formar novos artistas numa cidade-satélite?ROSA PIRES: A ideia de um projeto que possibilitasse o acesso de todos a estes espetáculos começou assim: “No período da Faculdade os professores exigiam trabalhos sobre espetáculos que deveríamos assistir. Detalhe: todos eram sempre à noite e no Plano Piloto. Se para mim já era difícil pagar a faculdade, imagine ir ao teatro?! Era puro luxo. Mesmo assim não perdia aqueles com entrada franca, raros, na verdade. Em dias de semana chegava da Faculdade por volta da meia-noite. Neste período, morava sozinha em Samambaia porque meus pais voltaram para roça e me deixaram estudando. Mas nos fins de semana, quando ia aos espetáculos gratuitos, haviam menos ônibus circulando e chegava quase 1h da manhã. Um dia fui ao Teatro Nacional assistir um espetáculo, era uma ópera. Quando acabou, já eram quase meia-noite. Perdi o último ônibus e tive que fazer uma “via sacra” até chegar em casa. Cheguei em Samambaia às 2h da manhã e um homem correu atrás de mim com uma faca. Nesta época era o local em Brasília onde mais ocorriam estupros. Felizmente consegui gritar e um vizinho saiu para me socorrer e não aconteceu nada grave, além do trauma. Daí em diante não fui mais a nenhuma peça que começasse após às 20h e sempre saia mais cedo da Faculdade, perdendo as últimas aulas. Até hoje tenho medo de sair à noite, não fico na parada de ônibus sozinha. Adquiri o péssimo hábito de passar a noite acordada trabalhando e dormir durante o dia, então quase sempre ensaiamos de madrugada.

Entrevista Revista Tablado, com Rosa Pires - 2004

Foto: Pachá Lago.

TABLADO: Como é isso?

ROSA PIRES: Sei que quando nasci meus pais não tinham condições de me criar e me deram para uma mulher que morava no barraco de lona ao lado, dizem que era na zona rural. Aí no outro dia meu pai teria ido me ver e ela havia me jogado fora. Meu pai me encontrou no meio do lixo, havia pegado tanta friagem que nem chorava mais. Me embrulhou numa manta, pegou a carroça e saiu sem saber o que fazer. Foi em Taguatinga que encontrou um casal sentado na parada de ônibus que parou e ele me ofereceu a eles. Este casal, apesar do susto, não pensou duas vezes: tomou-me nos braços e seguiram para o hospital onde fui desenganada pelos médicos. Como minha mãe, que havia acabado de me atorar, havia feito uma promessa de adotar uma criança se meu pai se curasse do câncer, viajou comigo para tratar na cidade de Pires do Rio, onde fiquei até “viver novamente”! Apesar de ter caído de paraquedas nesta família, meus pais me criaram com todo amor e dignidade, em meio a todas as dificuldades porque também eram pobre. Então tenho esta dívida com a cidade. Quero dar a mesma chance que tive a outras pessoas de estudar, se divertir e serem felizes. A forma que escolhi para fazer isso foi através da arte. Sou contra o “assistencialismo”, porque é fácil dar esmolas, cesta básica e roupas velhas... Difícil é dar amor, oportunidade e alegria. As pessoas precisam sim de alimentos, mas alimentar apenas o corpo é como criar porcos. E depois, eu não dou nada, apenas pago o que recebi um dia.

TABLADO: Como surgiu a primeira Escola de Teatro de Taguatinga?

ROSA PIRES: Surgiu de um projeto desenvolvido em 2000, quando ainda era professora da SEDF e ministrava aulas de Iniciação Teatral e Artes Cênicas. Resolvi juntar 20 alunos tidos como “problemáticos” e forte candidatos a reprovação e formei um grupo de teatro da escola. As aulas ocorriam duas vezes por semana. O resultado foi surpreendente! O que aprendiam na oficina levavam para os outros colegas que não foram contemplados com o projeto, porque dava estas aulas na minha coordenação e já tinha cerca de 15 turmas. Montamos no final do ano “O Pagador de Promessas”, apresentando em diversas outras escolas e em um shopping da cidade.

TABLADO: O que acha da política cultural da cidade?

ROSA PIRES: A política cultural da cidade é elitista, na maioria restrita ao Plano Piloto onde os artistas são sempre os mesmos porque o apoio do governo fica restrito a uma “panelinha”. Quando promovem algo por aqui, confundem “cultura popular” com “populesco”. O povo tem o direito de ir ao teatro, se não vai é porque não tem oportunidade. Não têm o hábito de ir e alguns nunca foram ao teatro e por isto dizem que não gostam. Levei os alunos da escola para assistirem num domingo desse mês uma pela no Teatro Plínio Marcos. Só foi possível irmos todos porque ganhei convites, coisa rara... Uma das alunas que mora em Samambaia para chegar a tempo na peça, pegou quatro ônibus. Depois da peça voltamos todos a pé para a Rodoviária, e à meia-noite ainda estávamos no centro de Taguatinga esperando as meninas pegarem seus ônibus. Sabe Deus como chegaram em casa. O artista não pode ficar condicionado ao apoio do governo para exercer sua profissão."

NOTA:  A Escola de Teatro de Taguatinga fechou em 2006, mas os projetos e ideais dentro do universo da arte prevalecem os mesmos. Meu muitíssimo obrigada aos editores da Revista Tablado pelo reconhecimento do meu trabalho.

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